sábado, 24 de outubro de 2009

A revista Sábado, da outra semana


Trazia uma reportagem sobre as mulheres maltratadas na nossa (alta sociedade), não comprei, não li. Li isso sim, alguns blogs com manifestações de revolta e com comentários em que se acusa as mulheres abusadas, em que não se compreende porque elas ficam, em que não se compreende tanta coisa e onde se condena outro tanto. Também já pertenci a esse grupo. Hoje apeteceu-me falar, deixar um pequeno testemunho, tentar ajudar os outros a perceber, para ver se eu também consigo perceber, e, talvez assim , perdoar-me. Não sou da alta-sociedade, vivo aquilo que na época dos meus pais, se designaria por vida remediada. Sempre trabalhei e estudei. Tive alguns namorados, daqueles que vamos até certo ponto mas não mais, chamem-me idiota, se quiserem, mas eu queria ter a certeza de que não era uma coisa casual, não era isso que eu queria, tinha que haver aquela química, a tal "faísca". Pensei ter encontrado isso com o pai do Jota, não era rico, mas tinha um cargo elevado numa empresa importante, não foi isso que me atraiu, foram as suas maneiras, as suas palavras, o insinuar-se sem nada exigir,
Ao fim de dois anos casámos e a lua -de-mel acabou antes de começar: nessa noite os amigos apareceram e foi noitada até às tantas, fui dormir sózinha. Prometeu-me que não iria ser assim, e eu não ia desistir logo no 1º dia, continuámos. Comigo o abuso, não foi físico, pelo menos até eu decidir que estava na hora de vir embora. Foi durante anos um abuso emocional e intelectual continuado: tipo fazemos sexo para te fazer o favor porque não mereces, ou és mesmo burra e não percebes nada disto (fosse o "isto" o que fosse, e há frente de quem fosse), se lhe dava um DVD que sabia que ele gostava era porque podia ter comprado a outra versão e era posto de lado meio aberto, não interessava se estavamos sós ou se era, por exemplo, a distribuição de prendas de Natal com a família reunida. Quando o Jota nasceu, as coisas não correram muito bem, estive demasiado tempo com baixa e no ano seguinte fique desempregada, foi ainda pior. Não aguentei e disse-lhe que queria o divórcio e foi o inferno, não por amor, por paixão, pelo filho, mas porque eu tinha a audácia de querer sair. Eram discussões constantes, humilhações à frente de todos, até do J, empurrões, estaladas. Saí . Vim fazer este retiro com o J, um novo emprego e tentar uma nova vida, de preferência só. Quero agora dizer porque não disse nada, porque tentei esconder, ou pelo menos tentar perceber também.
Penso que nas classes com mais poder económico e com um um nível cultural mais elevado, não é que nos doa menos, teremos talvez mais vergonha de admitir que aquela pessoa que está ao nosso lado e que se mostra tão educado e bem falante com os outros é, na verdade um crápula, porque ninguém ia acreditar em nós, o pai do J disse aos amigos que eu tinha arranjado um amante e que só queria era dinheiro, o que é uma redonda mentira, o meu único homem é o J, e dinheiro o juiz estipulou 300 euros/mês e só agora é que ele começou a dar, por ter sido obrigado. Também calamos pela família, a vergonha de dizer aos nossos pais que têm quase 50 anos de casados que estamos a ser tratadas assim, eu assumi no dia em que fui esbofeteada na presença da minha irmã porque tinha saído com ela e o J e não tinha avisado. O meu amor começou a chorar, a minha irmã agarrou nele e enquanto fiquei para trás a fazer frente ao pai ela fugiu com o meu menino e telefonou à polícia. Bem, continuo sem me perdoar, sem conseguir perceber porque eu que sempre fui de ir à luta me deixei ficar e me deixei humilhar continuamente, como é que pude acreditar que amava alguém tão hipócrita, e tão mal-formado.
Só vos posso dizer que o dia mais feliz da minha vida, depois do nascimento do J, foi o dia em foi decretado o divórcio. Boa noite.

23 comentários:

  1. O importante é que conseguiste sair, foi preciso ires à luta.
    E não é qualquer uma que escreveria aqui o seu testemunho.

    Admiro a tua coragem!... :)

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  2. Obrigada, Pronúncia. Acho que não é tanto a coragem, é mais o estender a mão porque sentimos sempre a solidão, achamos sempre que só nos acontece a nós, apesar de racionalmente, sabermos que não é assim. Mas são situações em que o racional não existe e penso que o 1º passo para voltarmos a ser felizes é assumirmos que aconteceu e que infelizmente este mal anda por aí. beijinho.

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  3. É a primeira vez que venho aqui ao teu cantinho e senti necessidade de comentar este teu post. Felizmente nunca senti na pele nada daquilo por que passaste. Apesar de ser divorciada e de ser mãe de duas crianças pequenas, nunca o meu ex-marido me encostou um dedo sequer.
    No entanto, e porque no meu círculo de amizades chegadas acompanho duas histórias em tudo semelhantes à tua, o teu testemunho tocou-me.
    As mulheres ficam por muitas razões. Porque estão isoladas. Porque são financeiramente dependentes dos maridos/companheiros. Por causa dos filhos. Porque acreditam que o casamento é para sempre. Porque. Porque. Por tantas razões. Deverão ser julgadas e condenadas por ficarem? Não! Nunca! Devem é ser ajudadas, pois nem todas têm a força que tu tiveste e que tens todos os dias.
    A ti e ao J. desejo que a vida, daqui para afrente, só vos sorria e que os vossos dias sejam como o arco-íris: luminosos, lindos e libertadores.

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  4. Obrigada, Storyteller. Bem hajas pelo teu comentário. Nos dias de insegurança, são estes bocadinhos que nos dão força e na construção de uma nova estrada há sempre momentos de insegurança. Quero só acrescentar uma coisa: as mulheres também ficam por amor, porque não querem acreditar que aquele amor que as levou até ali as tenha enganado tantoe depois procuram a resposta ao Porquê? e ao como? Porque é que isto aconteceu e como é que aconteceu e não me dei conta? Porque é que confiei? Beijinho e uma óptima semana para ti e para as tuas crianças.

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  5. Parece que as coisas não mudaram muito desde os tempos dos nossos pais...O que impressiona nas classes elevadas é que, teoricamente, com melhor acesso a educação e dinheiro...os maus tratos não deveriam existir...
    Obg, pela coragem do teu relato.
    vim para ficar..no teu blogue.

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  6. Acho que o acesso à educação, nestes casos ainda nos deixa mais frágeis. Não é fácil explicar, mas torna-se mais difícil de acreditar que nos esteja a acontecer, também é mais difícil que os outros acreditem em nós, porque "aquela" pessoa sabe ser agradável, fora do círculo familiar.
    Obrigada pela tua presença Luís, no meu blogue :)

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  7. Cat, Obrigado por teres tido a generosidade de contar esta experiencia.
    Lá no meu canto denuncio muitas situações, geralmente pergunto, “quem pede desculpa ao mundo?”.
    A única coisa que podemos fazer é denunciar, é falar ( e acredito que no teu caso e também de muitas outras mulheres isso seja mesmo difícil) e fazer falar.
    Penso no entanto que temos que fazer o papel do colibri, deitar água no fogo, nem que seja gota a gota, não é muito, mas é a nossa parte.

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  8. Sabes, Paulo talvez seja mais fácil falar aqui, neste mundo de encontros e desencontros da net onde temos algum anonimato, não pela vergonha mas pela pressão dos outros( a maioria das vezes das outras) que acham que conhecem a pessoa com quem vivíamos que nós que estávamos lá e que sofremos caladas, demasiado tempo. Esta é uma sociedade cheia de preconceitos e as mulheres infelizmente, condenam-nos mais (não todas, claro, aliás já recebi aqui alguns testemunhos solidário que muito agradeço). Obrigada também por teres vindo.

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  9. Catwoman,
    Admiro a coragem com que falas do assunto e a coragem que demonstraste ao ter posto um ponto final na situação. O teu filho, um dia, terá um enorme orgulho de ti, e tu deves ter orgulho de ti própria todos os dias.

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  10. Há dias em que não é fácil erguer a cabeça,afinal, foram anos a quebrar-nos o espírito. Mas depois, olho o J e penso que por ele fiz o que tinha a fazer e por ele e por mim, vou continuar a viver de cabeça erguida e tentar transmitir ao J aquilo que os meus pais me transmitiram: respeitar os outros para que nos possamos respeitar a nós próprios e assim possamos pedir o respeito que nos é devido e nunca esquecer que o tempo que dedicamos à familía e aos amigos não é desperdiçado: é amor e faz-nos bem.Não têm estudos os meus pais,mas têm sabedoria e estou muito orgulhosa deles, quero que o J sinta o mesmo em relação a mim.Bjs. e obrigada pelas tuas palavras.

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  11. Mas quiseste sair e saiste. E não voltaste...

    Apesar de tudo, porque sei quais são as envolventes (o ser deixada de lado pela própria família, por exemplo), sendo a mais complicada a acção judicial, tenho que compreender a dificuldade da separação, até porque o pedido de divórcio, mais a mais com filhos, é enorme.

    Mas é isso que importa, teres saído. E demonstras uma enorme coragem, ao partilhares o teu caso, a tua vida.

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  12. Não sei se é coragem, é apenas vontade de dizer às mulheres que passam por estas situações que não são culpadas. Não são culpadas por ter amado, não são culpadas por ter ficado, fosse pela dependência económica, fosse pelos filhos, fosse pelo que fosse. Porque a culpa é grande nestas situações e esse sentimento é-nos transmitido de uma forma mais acutilante pelas outras mulheres, quantos comentários de amigas e colegas, tipo: " a mim não fazia, era o que mais faltava, eu fazia e acontecia...", e nós sentimo-nos mais insignificantes ainda do que aquilo que nos fazem sentir e casa, não comentamos, acusamos a vergonha e nunca seremos capazes de lhes pedir ajuda. Por isso deixo o testemunho que é possível que o "deus todo poderoso" das nossas vidas só tem a importância que lhe damos e assim que deixamos de lhe a dar, vem ao de cima a sua insignificância.
    Obrigada pelo apoio 13.

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  13. Cat, tudo na vida, “só tem a importância que lhe damos e assim que deixamos de lhe a dar, vem ao de cima a sua insignificância”.

    Era capaz de excluir no máximo duas excepções, os pais e os filhos, as únicas duas coisas que tu não podes mudar (família), serão sempre pais e filhos até à morte, tudo o resto é passível de ser mudado, deixado ou aceitado!

    kiss
    Bom fim de semana.

    :)

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  14. Obrigada, uma vez mais, Paulo, pela tua solidariedade e pelo carinho das tuas palavras. É verdade que a familía não pode ser mudada (eu não mudaria a minha por nada: os meus pais, o J, a minha irmã, são o meu coração)por isso e, por o ver dessa forma, não compreendo certos "pais" como o do J, por exemplo, se o ouvirem falar ele tem um rapagão muito inteligente mas depois nem um telefonema quanto mais uma visita ( para mim é melhor, estou mais descansada, mas sei que para o J seria importante uma figura masculina que não fosse o avô , o padrinho, ou o futuro tio).

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  15. :)

    Quanto ao resto, nunca vivi, nem de perto, a situação, mas parece-me que o J está rodeado de homens, e com a ajuda deles, ele pode ter a tal referência masculina.

    Tenho a certeza que farás um bom homem, Cat.

    ;)

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  16. Obrigada, pelo voto de confiança, Paulo há importante porque há dias em que me levanto e tenho a certeza de que vou vencer e conseguir, mas outros há em que duvido de tudo e tenho medo de não ser capaz. O meu "segredo" é mesmo ir em frente porque o futuro é "lá". Dá para perceber? (é que se não der a culpa é do anti inflamatório)
    :)

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  17. E isso tudo que falas com a agravante de só ser feito no segredo das 4 paredes? E ser o maravilhoso homem que todas desejam, fora das mesmas paredes?

    E isso tudo e ninguém acreditar em ti? Colocar a tua sanidade mental em causa e, como um louco moribundo, deixarem-te a definhar ou a tentar reerguer-te sozinha?

    Ambas sabemos que é f... mas ambas sabemos que não morremos! ;)

    Beijo

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  18. Olá Valquíria, sê bem vinda1 Já tinha passado peloteu canto, mas penso que nunca comentei. Tens razão é f... Mas tento reeguer-me, é certo que temos "picos", penso que ,me percebes, mas conto com muitos amigos, apesar de neste momento ter tido que fazer um "retiro", vamos estando em contacto.
    Mas, se me permites parafrasear-te um pouco: por vezes "tenho saudades do que nunca tive", de chegar à noite e ter um ombro amigo nde me pudesse apoiar, pensar que se não tivesse força no dia seguinte alguém me ajudaria a levantar o moral.Penso que é depois de sairmos que olhamos para trás e pensamos"Meu Deus, tanto tempo, como pude ter ficado, porque fiquei? Que dependência era esta, eu que nunca usei drogas (a não ser as medicamente prescritas) porque fiquei, porque me deixei anular assim? O que é certo é que fiquei e agora é ir em frente.
    Valquíria, ele foi o próprio a dizer que era a palavra dele contra a minha e que ninguém acreditaria em mim. Enfim,fiquei, mas parti e agora o céu é o limite! :) Amanhã não sabemos, mas hoje o sol ajudou. Um beijo e volta quando quiseres.

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  19. Bem... tenho um caso próximo, que só soube recentemente, que ainda está numa fase anterior à que descreves neste teu testemunho (já agora, obrigado pela partilha).

    O meu problema é que não sei bem como lidar com a situação... ou seja, quero intervir para ajudar, mas sinto que estou a entrar na situação "sem convite".

    O caso envolve abuso físico e psicológico. Sendo o abuso físico pontual e esporádico, já percebi que não foi a única vez, e o que se passa agora é que ela está grávida de cerca de 2 meses (pouco mais). A situação que se passou agora foi, na minha opinião, bastante grave. Mas ela teima que apesar de tudo está bem e que ele vai recuperar, que têm uma grande intimidade um com o outro, que gosta muito dele, e que ela também é bruta nas palavras e é intempestiva...

    Por mais bruta que seja... acho que nada justifica violência física... afirmei e ela aceitou... mas apesar de tudo, mantém-se.

    Tendo vontade de reunir alguns amigos interessados para dar uma lição ao inqualificável energúmeno, não o posso, nem devo, fazer. Tento manter a calma e falar com ela como amigo (que sou... também sou primo e padrinho dela) no sentido de a fazer ver que isso não é viver, que uma relação precisa de respeito mútuo, amizade, amor... mas sem criar com ela qualquer antagonismo, para não a afastar de mim, para que ela não deixe de contar o que se passa, para não se fechar mais...

    Gostava de saber como... como fazer para ela deixar de estar "enfeitiçada" pelo anormal que a abusa, que a trata mal, que a explora, e que com essas atitudes ainda a coloca em risco de vida e a do bébé.

    Acho que... se alguma coisa mais acontecer... ainda arranjo mesmo o tal grupo de amigos... só espero é que não seja tarde demais. Até lá, eu, assim como mais 2 pessoas que lhe são muito próximas e têm acompanhado a situação, temos tentado dar apoio, acompanhar regularmente a evolução da situação, e a tentar puxá-la para fora daquele buraco negro.

    O que preciso... mesmo... é ideias e conselhos de quem viveu por dentro de uma situação semelhante... como é que se faz, qual é o click... o que é necessário fazer para que aquela alma veja o erro que está a cometer ao manter-se naquela relação?

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  20. Espero que tenhas recebido a minha resposta, desculpa mas achei melhor responder em privado.
    Beijinho

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  21. Venho aqui bastante atrasado, mas ainda a tempo de dar os parabéns por teres a coragem de deixar um testemunho destes.
    Não tenho mais palavras e ainda bem que é passado.

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  22. Como vês pelo meu testemunho, nunca é tarde. Obrigada,por teres vindo. Bjs.

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